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Violência doméstica: alguns apontamentos

Violência doméstica: alguns apontamentos

Violência é definida pela OMS (Organização Mundial da Saúde) como sendo o uso da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou comunidade, que resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação. Este é um conceito amplo de violência, que abrange diversos tipos de atos, desde os auto-infligidos , passando pela violência interpessoal até aqueles direcionados a comunidades ou grupos. Aqui, focalizamos nossa discussão em um tipo restrito de violência presente na definição da OMS: violência doméstica. É interessante tomarmos como base tal definição, pois ela amplia o conceito de violência e pode ser relacionada com a definição de saúde, também apresentada pela organização. A definição de saúde da OMS apresenta o conceito como um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doenças. A violência, portanto, é uma questão de saúde, uma vez que afeta o bem estar de indivíduos e grupos.

A violência doméstica ocorre principalmente no ambiente familiar, entre pessoas que mantém vínculos afetivos. Assim, as formas mais comuns de violência doméstica se dão entre membros de uma mesma família, geralmente entre gerações diferentes ou gêneros distintos.

Temos, assim, um amplo espectro da violência no âmbito doméstico: violência contra idosos e contra pessoas com deficiência, por parte daqueles que, em princípio, deveriam ser seus cuidadores e protetores; violência de gênero ( contra as mulheres); violência contra crianças e adolescentes no ambiente doméstico (violência sexual, negligência, violência física e psicológica).

Por violência intrafamiliar entende-se aquela que ocorre entre os membros da família, nos diferentes subsistemas (conjugal, parental, fraternal), principalmente no ambiente da casa, porém não exclusivamente nele”. (MACIEL; CRUZ, 2009, p. 91)

As crianças, devido a sua condição de dependência física e emocional, são comumente as mais vulneráveis às situações de violência familiar. Além disso, idosos e portadores de deficiência também se encontram em estado de maior vulnerabilidade e, portanto, sujeitos a situações de violência. As mulheres, culturalmente, também se incluem na situação de maior dependência em relação aos homens, base da compreensão acerca da violência de gênero.

Os dados estatísticos referentes à incidência de violência nas relações afetivas no Brasil ainda são incipientes e dispersos. No entanto, segundo MACIEL;CRUZ (2009), baseado em dados do IBGE de 2002, as crianças são os membros da família que mais sofrem violência, sendo que, em 80% dos casos os pais são os agressores.

No Brasil, estima-se que 20% das crianças e adolescentes são vitimas de alguma forma de violência. Segundo o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), anualmente 6,5 milhões de crianças sofrem algum tipo de violência intrafamiliar e cerca de 18 mil são espancadas diariamente.” (MACIEL; CRUZ, 2009, p.91).

No tocante à violência contra mulheres os dados de uma pesquisa realizada pelo Senado Federal em 2005, com 815 mulheres de 27 capitais brasileiras mostram que, da população pesquisada, 17% das mulheres declararam “já ter sofrido algum tipo de violência doméstica e, desse total, mais da metade (55%) afirmaram ter sofrido violência física seguida de violência psicológica.” (WERLANG; SÁ; BORGES, 2009, p. 110). Os dados também apontam o marido ou companheiro como o principal agressor das mulheres, seguido pelo namorado e pelo pai.

A violência contra idosos varia de 2% a 10% dependendo do tipo de população estudada, segundo GARCIA; CRUZ, (2009). Conforme os autores, a negligência é o principal fator de violência (49%), seguida pelo abuso emocional (35%), físico (30%), financeiro (26%), abandono (4%) e o abuso sexual (1%).

A violência contra crianças e adolescentes aparece na literatura especializada, pela primeira vez, nos trabalhos de Auguste Ambroise Tardieu que, em 1860, descreveu casos de incesto com crianças menores de onze anos de idade. Este autor foi pioneiro no uso do termo “criança espancada”, quando ainda não havia uma preocupação com o tema. “Nos anos de 1924, em Genebra e de 1952, em Viena, aconteceram duas reuniões internacionais, com o objetivo de discutir sobre o bem-estar da criança. Em 1959, a Assembléia Geral da ONU aprovou e proclamou a Declaração dos Direitos da Criança.” (MACIEL; CRUZ, 2009, p. 91). O ano de 1979 foi considerado o Ano Internacional da Criança e em 1989 realizou-se a Convenção Sobre os Direitos da Criança.

A violência contra mulheres somente ganhou visibilidade a partir dos movimentos sociais feministas. No Brasil, tal movimento teve maior presença a partir da década de 70, com denúncias sobre abusos, principalmente no contexto da ditadura militar. Em 1985 foi criada a Delegacia de Defesa da Mulher. Na década de 80 também foi implantado o Programa de Assistência Integrada à Saúde da Mulher. Em 1993 a ONU reconheceu a violência contra a mulher como um obstáculo ao desenvolvimento e uma violação dos direitos humanos. (MACIEL; CRUZ, 2009)

A violência nas relações afetivas, apesar de atravessar fronteiras históricas e culturais, somente passou a ser enfrentada diretamente, no mundo ocidental, há poucas décadas. No Brasil, é um tema que vem sendo discutido nos últimos anos, mas ainda necessita de pesquisas e maior visibilidade. Apesar disso, especialmente a partir da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente e, mais recentemente, da Lei Maria da Penha, políticas públicas foram implementadas no sentido de enfrentar a questão. No entanto, talvez a informação, que tem o poder de gerar uma mudança de atitude frente à violência nas relações afetivas, seja a ação mais fundamental nesse momento e um dos caminhos para a prevenção das situações de violência.

Aportes sócio-históricos para a compreensão do fenômeno da violência doméstica

Toda relação de violência implica também em uma relação de poder e de domínio de uns sobre os outros. Dessa forma, é importante compreender a violência dentro de um contexto sócio-cultural. Assim, a violência doméstica reproduz um modelo social onde há uma relação de desigualdade entre pessoas, no qual algumas pessoas ou grupo de pessoas são culturalmente definidos como hierarquicamente superiores a outros. Dessa forma, na relação adulto-criança, homem-mulher, é importante considerar não apenas os aspectos relacionais, mas principalmente os histórico-culturais.

Desta forma, a busca de compreender a violência doméstica como um produto de fatores puramente individuais, calcada em uma avaliação do indivíduo ou mesmo da relação entre dois indivíduos está fadada ao fracasso. A violência não pode ser explicada por fatores meramente pessoais e individuais, características de personalidade ou patologias. Evidente que tais características individuais estão presentes nas situações de violência domestica, tornando-as particulares e com características próprias. No entanto, o entendimento desse fenômeno não pode ser reduzido a aspectos singulares.

SAFFIOTI (2007) apresenta uma análise da violência calcada em um modelo sociológico, útil para nosso entendimento da questão.

A autora argumenta que o fenômeno de vitimização da infância tende a ser vivido, pelas pessoas, em sua forma concreta, particular. Ou seja, as pessoas tendem a pensar os agressores como monstros, doentes, exceções, imputando a culpa unicamente em indivíduos que se desviam dos considerados normais. No entanto, essa visão impede as pessoas de entenderem a violência como um fenômeno que encontra suas raízes numa ordem social na qual as relações sociais são permeadas pelo poder.

Na sociedade ocidental estão presentes sistemas de dominação-exploração, como a exploração das classes subalternas pelas dominantes, o patriarcado e o racismo. O patriarcado legitima a assimetria nas relações de gênero, a subordinação da mulher ao homem e o racismo permite ao branco determinar o lugar do negro na estrutura social. O adultocentrismo seria outra forma de dominação em nossa cultura, embora não exista, como nas outras formas de dominação, uma relação de conflito de interesses, contradições. O adultocentrismo implica que os adultos são hierarquicamente superiores às crianças e adolescentes, sendo que ao adulto cabe ensinar à criança a socialização de seus impulsos, não existindo, entre eles, uma contradição ou interesses antagônicos.

Para a autora, esses sistemas de dominação formam um sistema único, uma amálgama. Assim, o poder, em nossa cultura, se define como macho, branco, rico e adulto. As categorias sociais subalternas são, portanto, constituídas por mulheres, negros, pobres e crianças. O último lugar na hierarquia é ocupado pela mulher negra, pobre e criança.

“No topo da escala está o macho branco, rico e adulto Exatamente em virtude da alta concentração de renda em poucas mãos, são pouco numerosos os homens a desfrutar deste poder que denominarei de grande poder ou macropoder. Os detentores deste grande poder podem submeter qualquer pessoa menos bem situada nesta hierarquia. ” (SAFFIOTI, 2007, p.17)

No entanto, se a vitimização dependesse apenas do macropoder, o número de pessoas vítimas de violência seria bem reduzido. A violência nas relações afetivas é disseminada porque o agressor detém pequenas parcelas de poder, mas almeja ao grande poder, constituindo o que a autora denomina a síndrome do pequeno poder. Assim, aquele que detém pouco poder, valoriza e almeja o grande poder e exerce sua força contra aqueles que estão situados hierarquicamente em posições subalternas (ou vistas como) às suas.

As categorias sociais contra as quais se exerce o pequeno poder sob a forma de síndrome são quantitativamente muito distintas. As mulheres, em geral, só podem entrar em síndrome do pequeno poder frente a crianças. Excetuando-se aquelas cuja ocupação consiste em lidar com crianças, via de regra, a mulher exerce seu pequeno poder contra crianças de sua própria família: filhos, sobrinhos, netos. À síndrome do pequeno poder do homem estão sujeitas amplas categorias sociais: mulheres, crianças, homens ocupando posições subalternas. Por se tratar de fenômeno quantitativamente mais importante, a síndrome masculina do pequeno poder tem conseqüências mais graves”. (SAFFIOTI, 2007, p.18).

O poder permeia todas as relações sociais e as relações de poder revelam a desigualdade social entre os envolvidos. Crianças são consideradas socialmente inferiores a adultos, mulheres a homens, negros a brancos, pobres a ricos, deficientes a não-deficientes, idosos a jovens. Para a autora, a natureza do pequeno poder não é individual, embora se expresse em pessoas reais, mas social. A cultura fornece todos os elementos para a existência da síndrome, uma vez que todos são socializados dentro do mesmo esquema de valores culturais e é dessa maneira que se deve compreender as situações de violência no âmbito doméstico.

Os estudos da psicologia social sobre gênero também caminham na mesma direção. Em psicologia social, gênero é distinto de sexo, ou seja, sexo implica em uma condição biológica relacionada com a procriação e gênero é uma construção social. Gênero se relaciona com as diferenças sexuais, mas não necessariamente com diferenças biológicas. O gênero implica em como cada sociedade busca transformar em homem um macho e em mulher uma fêmea. Cada cultura tem significados diferentes para essa transformação, padrões distintos do que é ser homem e do que é ser mulher, do papel de cada um na sociedade, seus direitos e deveres.

O conceito de gênero foi introduzido no discurso teórico na década de 70, primeiramente através da antropologia, por influência do movimento feminista. A luta pela igualdade e os valores igualitários entre homens e mulheres é o pilar do movimento feminista.

Do ponto de vista histórico-cultural, a definição de papéis masculinos e femininos na nossa sociedade está baseada no patriarcalismo, no qual existe uma hierarquia entre homens e mulheres. Ao homem é dado um poder, uma superioridade em relação à mulher. Esta permanece em uma posição subalterna. A isso damos o nome de hierarquia de gênero, que “descreve uma situação na qual o poder e o controle social sobre o trabalho, os recursos e os produtos, são associados à masculinidade” (STREY, 1998, p. 184). O patriarcado é uma forma de hierarquia na qual homens detêm o poder e mulheres estão em posição de subordinação. Na sociedade patriarcal, a autoridade sobre as mulheres é exercida pelo pai e pelo marido, embora as mulheres também exerçam autoridade através do papel de mãe, por exemplo.

Na civilização ocidental o patriarcado foi, até há pouco tempo, a forma prevalecente de hierarquia de gênero. Atualmente, o poder social é identificado com atributos masculinos, não necessariamente com o homem, ou seja, tanto homens quanto mulheres podem deter o poder social, mas ele continua a ser relacionado com características masculinas. Assim, simbolicamente, o poder continua a ser masculino e a discriminação contra mulheres continua a sofrer reforço desta ideologia e é isso que mantém a ideia de superioridade de homens em relação às mulheres. As explicações para a violência de gênero são, assim, buscadas nas determinações culturais.

Nessa relação ocorre o fenômeno da subordinação. Ela implica que há uma relativa falta de poder de uns frente a outros membros da sociedade. Subordinação implica em dependência sistemática, seja entre mulheres e homens, pobres e ricos, crianças e adultos, etc.

Essa relação de subordinação de gênero é parte da socialização tanto de homens quanto de mulheres, na qual

“…os homens são considerados como sendo mais instrumentais (que agem, competem, buscam realização profissional) que as mulheres, enquanto elas seriam mais expressivas (são mais afetivas, buscam aproximação) que eles. É importante notar que os traços considerados masculinos costumam ser avaliados mais positivamente na sociedade que os traços considerados femininos…” (STREY, 1998, p. 195)

Apesar de ser fruto de socialização, os traços ditos masculinos e femininos tendem a ser encarados pelas pessoas como algo natural, tendo como fonte a biologia e não como algo aprendido e cuja origem é a cultura. Ou seja, a sociedade tende a naturalizar as diferenças construídas entre homens e mulheres, fazendo com que as pessoas pareçam “ter nascido assim”, ocultando toda a problematização sobre a origem cultural e aprendida destas diferenças.

Assim como as diferenças de poder entre homens e mulheres tendem a ser naturalizadas, as diferenças entre outras categorias sociais também sofrem o mesmo processo. Desta forma, parece, ao agressor e, comumente, à própria vítima, natural que uns exerçam poder sobre outros.

É nesse contexto que devemos estudar e problematizar o tema da violência no contexto familiar e afetivo. A esse respeito SAFFIOTI (2007) afirma que

“…a destruição do patriarcado coibiria tais abusos, porque a mulher adulta seria socialmente igual ao homem adulto. Logo, a mãe estaria capacitada a defender sua prole. Porém, e a criança que, neste sistema, deve ser domesticada para se transformar em força de trabalho dócil? Creio que valerá a pena atacar a própria simbiose patriarcado-racismo-capitalismo, na tentativa de forjar novos valores e novas relações sociais. Se os valores contiverem a igualdade social entre homens e mulheres, entre brancos e negros e o respeito pelo ser humano de qualquer idade, a balança nas relações sociais tenderá a pesar mais do lado do afeto que do poder. Neste novo contexto, talvez os adultos não tenham necessidade de destruir seu próprio produto. E o abutre dará lugar ao serhumano.” (SAFFIOTI, 2007, p. 21)

É tendo como base essa perspectiva que procuramos compreender e abordar o tema da violência doméstica. É importante considerar que os aspectos relacionados a psicopatologia ou as relações interpessoais, presentes em um nível individual ou grupal, acontecem tendo como suporte um contexto social que favorece relações de poder assimétricas dentro da família ou entre as pessoas.

REFERÊNCIAS

GARCIA, Schirley dos Santos; CRUZ, Roberto Moraes. Violência intrafamiliar contra idosos. ROVINSKI, Sonia Liane Reichert; CRUZ, Roberto Moraes (orgs.). Psicologia Jurídica: perspectivas teóricas e processos de intervenção. São Paulo: Vetor, 2009. p. 117-128.

MACIEL, Saidy Karolin ; CRUZ, Roberto Moraes. Violência psicológica contra crianças nas interações familiares. In: ROVINSKI, Sonia Liane Reichert; CRUZ, Roberto Moraes (orgs.). Psicologia Jurídica: perspectivas teóricas e processos de intervenção. São Paulo: Vetor, 2009. p. 89-106.

SAFFIOTI, Heleieth I. A Síndrome do pequeno poder. In: AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo (orgs.). Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. 2 ed. São Paulo: Iglu, 2007. p. 13-21.

STREY, Marlene Neves. Gênero. In: JACQUES, Maria da Graça Corrêa et al.Psicologia Social Contemporânea: Livro-texto. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 180-197.

WERLANG, Blanca Suzana Guevara; SÁ, Samantha Dubugras; BORGES, Vivian Roxo. Violência doméstica contra a mulher e a Lei Maria da Penha. In: ROVINSKI, Sonia Liane Reichert; CRUZ, Roberto Moraes (orgs.). Psicologia Jurídica: perspectivas teóricas e processos de intervenção. São Paulo: Vetor, 2009. p. 107 – 116.

Fonte: psicologiajuridicablog

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