A história da austríaca Elisabeth Fritzl chocou o mundo em 2008, quando foi revelado pela mídia que ela havia sido mantida no porão de sua casa, na pequena cidade de Amstetten, por 24 anos. Durante todo aquele período, Elisabeth conviveu com os abusos de seu pai, Joseph, numa relação incestuosa que começou quando a jovem tinha apenas 18 anos e da qual nasceram sete filhos. O caso foi exaustivamente divulgado pela imprensa local e internacional, até o julgamento de Joseph Fritzl, que resultou em sua condenação – prisão perpétua – em março de 2009.
Casos como este não são tão poucos, mas, sim, raramente tornados públicos. Em 2010, o jornal argentino El Clarín revelou Elvira Gómez, mulher que foi abusada sexualmente por seu pai por três décadas e com quem teve nove filhos – o mais velho teria se suicidado ao descobrir a verdade sobre o avô e pai. Como pessoas como o “monstro de Amstetten”, apelido de Fritzl, conseguem manter seu dia a dia de violência por tanto tempo?
Especialista no estudo de abuso sexual infantil, o psiquiatra e psicanalista Tilman Furniss já colaborou com publicações em entidades como a Organização das Nações Unidas (ONU), Organização Mundial da Saúde (OMS) e a International Society For Prevention of Child Abuse and Neglect (ISPCAN) e é autor do livro Abuso Sexual da Criança: Uma Abordagem Multidisciplinar, Manejo, Terapia e Intervenção Legal Integrados, no qual explica por que um caso de abuso dura anos, às vezes décadas.
“Certamente, as teorias de Furniss contribuíram para a melhor compreensão da dinâmica do abuso sexual e do funcionamento da psique de abusadores sexuais”, diz a psicóloga especialista em saúde da família Rita de Cássia Tassi, que há 14 anos trabalha com atendimento de crianças e jovens vítimas de abuso sexual. Segundo ela, Furniss defende que um ato de violência sexual intrafamiliar se baseia em dois sustentáculos: a síndrome da adição e a síndrome do segredo. Nas palavras de Rita de Cássia, as duas síndromes se interligam de tal forma que se tornam um “mecanismo de evitação da realidade para o abusador.
Na síndrome de adição, a rotina de violações, mesmo fazendo mal à criança ou adolescente e tendo o perpetuador plena noção de não ser algo aceito social e eticamente, é encarada por ele como um vício do qual não consegue se livrar. “No abuso sexual, crianças estruturalmente dependentes são como a ‘droga’ para a pessoa que abusa”, compara a psicóloga. Já a síndrome do segredo é mantida pelo violador por meio de ameaças – que podem ir desde violência física até perturbação psicológica, ao afirmar que as revelações do(a) filho(a) seriam responsáveis pela destruição da família – e proibições a suas vítimas de revelarem os abusos que sofrem.
As síndromes da adição e do segredo se unem, então, formando um círculo vicioso que permite a repetição dos abusos. Enquanto a adição impulsiona o abusador a recomeçar seus atos, “o ciclo se repete mantido pelo segredo, durante longos períodos de tempo”, explica Rita de Cássia. Para ela, o mais importante da teoria de Furniss é ter mostrado que o fato de um abusador admitir seus atos não pode ser enxergado como indício de que este estaria “curado” de seu comportamento desviante. “A prova e admissão da autoria do abuso sexual operam no domínio legal, não na psique do abusador”, alerta.
Segredo familiar
Ao mesmo tempo, vale ressaltar que a síndrome do segredo também afeta familiares e pessoas que convivem com a família. Não só pelo fato de o abuso sexual ser naturalmente um tabu do qual se evita falar, mas também porque, conforme explica Furniss, a dinâmica de violações pode acabar se configurando como fator equilibrante da vida familiar.
Não são poucos os relatos de crianças que afirmam já ter contado sobre o abuso que sofriam e mesmo assim foram desacreditadas. “Frequentemente encontramos crianças que dizem tentar contar às suas mães, a outros membros da família ou a pessoas de fora, mas temem não serem acreditadas, serem chamadas de mentirosas e serem castigadas pela revelação”, diz Furniss em seu livro. De acordo com Rita de Cássia Tassi, essa descrença acontece “porque os abusos sexuais passam a ter determinadas funções na vida familiar”.
Um ato de violência sexual intrafamiliar se baseia em dois sustentáculos: a síndrome da adição e a síndrome do segredo
A primeira delas, diz a psicóloga, chamada de evitação do conflito, acontece em famílias que precisam manter um funcionamento global satisfatório e o casamento é idealizado, sendo que há dificuldade para reconhecer o abuso sexual ou qualquer outro problema de cunho sexual. “Nestes casos, ambos os pais podem voltar-se contra uma criança específica, enquanto outra é eleita como especial pelo abusador, que mantém com ela um relacionamento incestuoso altamente secreto”, qualifica. A segunda função possível é a de regulador de conflito, na qual o pai é mantido na família graças ao abuso. “Várias crianças podem estar envolvidas de ambos os gêneros, sendo que isto tende a resultar em uma competição acirrada entre os irmãos, que disputam a atenção do abusador”, explica, acrescentando que, neste cenário, “a família volta-se contra o mundo externo e contra as crianças”.
Segundo a OMS, o abuso sexual infantil é o envolvimento de uma criança em atividade sexual que, em função de seu desenvolvimento, ele ou ela não compreende completamente. Para a professora do Instituto o desamparo da criança diante do adulto poderoso e abusador.
E já que elas não falam “com todas as letras” o que está acontecendo, é importante, segundo a especialista, prestar atenção aos sinais que podem demonstrar. “A escola é o principal lócus, o lugar de escuta privilegiado. Crianças que sofrem violência podem sinalizar e manifestar os sintomas nos desenhos, nas dificuldades escolares, nos relacionamentos entre os pares ou mesmo em comportamentos antissociais”, diz Anamaria.
No entanto, não há, segundo a especialista, um padrão de comportamento a ser observado na criança violentada sexualmente. “Existem inúmeros casos em que assistimos as crianças chamadas ‘precoces’ ou ‘superadaptadas’ em movimentos sintomáticos e difíceis, exibidos em fases posteriores à violência sofrida”, lembra.
Para Anamaria, o fundamental é compreender que uma criança está inserida em um contexto e, a depender dos recursos da família, em parceria com os serviços de uma rede de assistência, a criança pode resgatar e edificar possibilidades de elaboração da vivência traumática.
Culpa e depressão
Entretanto, Olga Ceciliato Mattioli, psicóloga, coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Violência e Relações de Gênero (Nevirg) da Faculdade de Ciências e Letras de Assis, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), lembra que as consequências do abuso sexual na infância são devastadoras para o psiquismo infantil. “Dificilmente uma criança passa por essa experiência sem carregar sérios danos ao desenvolvimento da personalidade.
Por se tratar de uma ação que deve se manter oculta, o abuso sexual implica na cumplicidade de familiares. Muitas vezes, a mãe, por exemplo, tem conhecimento desse fato. Quando há a revelação e a denúncia, é comum a mãe considerar que a criança provoca a situação ou até mesmo que é culpada pelo abuso, inocentando o agressor”, considera.
Fonte: Texto da Agência Notisa de jornalismo científico.