Estudo da Universidade de Kentucky (EUA) revela alcance devastador para família, amigos, primos, filhos, vizinhos, colegas de trabalho e simples conhecidos
Por Queila Ariadne, Izabela Ferreira Alves, Tatiana Lagôa e Rafael Rocha
15/09/21 – 03h00
A autorização do SUS para Maristela* iniciar o tratamento psiquiátrico chegou por correio, mas ela não estava mais viva. Já haviam se passado três meses desde aquele dia de setembro de 2020 em que a jovem de 16 anos tirou a própria vida, na região central de Belo Horizonte. “Foi um choque quando aconteceu”, desabafa a tia, uma técnica de enfermagem de 40 anos ainda abalada. A devastação emocional causada por um suicídio funciona como uma enchente que vai destruindo o caminho por onde passa. A ciência até já conseguiu fazer o mapeamento desse dilúvio. Cada suicídio impacta 135 pessoas, e todas podem estar expostas a efeitos psicológicos causados pelo trauma de perder alguém repentinamente. Nessa gradação, os desdobramentos podem ser leves ou até mesmo drásticos.
“Inclui família, amigos, primos, filhos, conhecidos, vizinhos e colegas de trabalho”, explica a pesquisadora Julie Cerel, diretora do Laboratório de Prevenção e Exposição ao Suicídio da Universidade de Kentucky, nos Estados Unidos. Foi o estudo feito por Julie e sua equipe que trouxe novidades a respeito do impacto do suicídio na comunidade ao redor. Até então acreditava-se que somente seis pessoas eram afetadas após alguém tirar a própria vida, mas os cientistas agora sabem que o estrondo é bem maior.
Entre esses efeitos mais graves, os profissionais de saúde mental afirmam que a ideação suicida pode ser um deles. Foi o que aconteceu com a técnica em enfermagem, que se julgava culpada pela decisão da sobrinha. “Será que eu não soube lidar com uma adolescente?”, questionava. São perguntas motivadas pelo sentimento de culpa, um grande inimigo de quem precisa se recuperar do luto.
A psicoterapeuta Paula Fontenelle passou por angústia parecida. Após o suicídio do pai, em 2005, ela foi tomada por dúvidas e não encontrou respostas. “Resolvi preencher essa lacuna e escrevi um livro”, diz. Após muita pesquisa, lançou a obra “Suicídio: O Futuro Interrompido”. Na publicação, a autora procura ajudar familiares que passam pela mesma situação. Ela também tem um podcast dedicado ao tema. “Meu objetivo é quebrar um pouco esse silêncio”, afirma.
Essa mudez eventualmente vem acompanhada pela vergonha. “Quando ocorre um suicídio, as pessoas não sabem o que dizer”, revela Paula, que alerta que ainda existem famílias que omitem que determinada morte foi motivada por suicídio. A psicoterapeuta conta que certa vez até foi repreendida por uma amiga, que pediu que ela nem pronunciasse a palavra “suicídio”.
Os que perdem alguém por autoextermínio são chamados de “sobreviventes”. Eles precisam se desvencilhar de algumas armadilhas no processo de luto, e ser alvo de julgamento alheio é uma delas. “Você passa pela dor da perda e pelo escrutínio da sociedade. As pessoas perguntam: cadê os pais? A culpa está implícita nessa pergunta”, adverte Paula. Para a psicoterapeuta, a escolha por viver ou não viver é individual.
Neste momento de fragilidade, o cuidado é apontado pela psicanalista Elisa de Santa Cecília como elemento primordial na prevenção. Autora do livro “As Horas que Separam Duas Mortes: Da Melancolia ao Impulso Suicida”, ela defende que socializar é um bom caminho para superar o luto, mas há variações. “Cada pessoa encontra sua forma de elaborar essa perda”, pondera.
Para Julie Cerel, a ciência precisa avançar para tornar esse caminho melhor iluminado. “Precisamos de mais pesquisas para determinar quem é mais impactado (além daqueles que se sentem mais próximos) e do que eles precisam. Precisamos de mais serviços de saúde mental disponíveis para aqueles que são afetados, bem como maneiras de chegar às pessoas após um suicídio em vez de esperar que eles saibam que precisam de ajuda”, atesta. O veredito é preocupante: “Infelizmente, não sabemos quais tratamentos são necessários para quais pessoas após um suicídio. Simplesmente não há pesquisa suficiente”, completa.
(*) Nome fictício
Grupos levam conforto a enlutados por suicídio
Grupos de apoio a enlutados têm se mostrado estratégias eficazes. São iniciativas que começaram a ser formadas ao se perceber que pessoas afetadas pelo suicídio, chamadas de “sobreviventes”, tinham demandas muito específicas. “Entre elas, o luto tende a ser muito mais difícil”, explica o psiquiatra Humberto Corrêa, presidente da Associação Latino-Americana de Suicidologia (Asulac) e professor da Escola de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
A tia de Maristela*, que se matou aos 16 anos, participa de um desses grupos. “Me traz conforto e ajuda a aliviar a culpa”, justifica. A psicóloga Vivian Zicker está à frente do Grupo de Apoio a Enlutados por Suicídio da UFMG, projeto de extensão da Faculdade de Medicina. Com encontros semanais e atualmente virtuais, o coletivo permite ao participante fugir dos julgamentos morais comuns no ambiente público. “Aqui eles podem falar coisas que na sociedade seria impossível”, diz Vivian.
Além de culpa, vergonha e raiva, a psicóloga afirma que os participantes chegam aos encontros “cheios de porquês e ses”: “E se eu tivesse atendido ao telefone? E se eu estivesse em casa naquela hora?”. Nessa teia psicológica onde o luto está imerso, Vivian destaca que o suicídio desperta sentimentos bastante complexos. Ajudar a clarear mentes em busca de apoio é o destino a ser alcançado. “Antes do luto da perda em si, temos que trabalhar a compreensão do comportamento suicida, que não foi uma escolha com livre arbítrio puro, e sim um resultado de transtorno mental”, diz.
(*) Nome fictício
“No grupo, eles podem falar coisas que na sociedade seria impossível. A pessoa sente o acolhimento de gente que passou pela mesma situação.”
Vivian Zicker, psicóloga do Grupo de Apoio a Enlutados por Suicídio (Gaes/UFMG)