Cérebro é potência. A química da massa cinzenta dentro de nosso crânio cria tudo o que sentimos, vemos, pensamos. As portas da percepção da realidade, como definiu Aldous Huxley, são, na verdade, receptores de neurotransmissores nas membranas dos neurônios. Há milênios, buscamos expandir e explorar essas portas e, assim, experimentar estados alterados da consciência.
“Mesmo que você volte ao estado normal, experimentar estados alterados de consciência revela novas perspectivas da existência, o que pode se transformar numa vantagem adaptativa”, sugere o neurocientista Stevens Rehen. Substâncias psicoativas, como LSD e DMT (dimetiltriptamina), são capazes de abrir os portais mentais que nos levam a essa realidade em que a lógica do tempo é distorcida e os limites da individualidade se dissolvem. Mas, na real, não precisamos de nada além de nosso próprio cérebro para mexer com a consciência.
Tomar um negocinho – seja um ácido, ayahuasca ou um copo de água com MDMA – tem os mesmos efeitos neuroquímicos que viver alguns tipos de experiências intensas em que estamos totalmente focados como, por exemplo, meditar, surfar uma onda gigante, rezar ou se entregar a um pornô na internet.
“Todos nós experimentamos estados alterados de consciência. Alguns têm isso através do esporte, outros com a religião ou uma substância psicoativa. São decisões individuais”, explica. Apesar disso, todos temos o mesmo cérebro, que segue evoluindo nos últimos 70 mil anos, e serve como substrato para os estados alterados de consciência, seja você um religioso em transe, seja uma garota vidrada em filme pornô. “É interessante observar como algumas dessas atividades são moralmente aceitas e outras, não. Consumo de drogas e pornografia são malvistos, enquanto cultos religiosos nem pagam impostos”, diz Stevens.
O que acontece no cérebro em momentos de consciência alterada é, muito simplificadamente, uma redução da influência do córtex pré-frontal sobre o restante do cérebro, e aumento da disponibilidade de serotonina, que funciona como uma chave para as tais portas da percepção. Essas interferências estão intimamente ligadas a experiências que despertam em nós a sensação de pertencimento. “É uma região cerebral conectada à noção de individualidade e sobre o que está à nossa volta”, explica Stevens.
O biólogo e neurocientista Tiago Bortolini estuda a relação entre a ideia de fusão de identidade e as torcidas de futebol. “Em um jogo importante, os torcedores que se identificam muito com os clubes sentem que a torcida e o time são uma coisa só. É muito semelhante à sensação de pertencimento provocada por drogas como o LSD”, conta. “Algumas das emoções mais sublimes que vivi envolvem futebol. Me sinto muito viva, que sou parte de um todo. Eventualmente, consigo alcançar a mesma sensação de quando medito no momento em que o Corinthians marca um gol no último minuto de um jogo importante”, relata Milly Lacombe, jornalista e apaixonada pelo Timão desde os 6 anos.
Se eu quiser chapar com deus
Descrever uma experiência de consciência alterada é desafiador exatamente porque nos descolamos da razão e das fronteiras que nos definem como nós mesmos. O monge budista Satyanatha, que calcula já ter meditado por mais de 2.000 horas, entende a viagem como uma imersão no reino da intuição. “O corpo físico se torna uma lembrança distante e sinto uma ligação profunda e empática com a natureza. Já tive baratos indescritíveis. Minhas experiências mais prazerosas na vida não foram sexo, foram meditação”, conta.
Em 2003, Guilherme Nascimento largou a advocacia e decidiu explorar a potência de sua mente. Fez diversos retiros, estudou ioga, rolfing (terapia corporal) e hoje trabalha introduzindo pessoas nesse universo. “Meditar não é o processo de se desligar, e, sim, de se ligar a outro lugar. O tempo fica relativizado, há uma pausa no fluxo contínuo da mente e isso traz um enorme bem— estar. Estar totalmente fixo no momento presente é a grande experiência”, conta.
Esquecer as paranoias do mundo e se permitir curtir o agora, ignorando o tempo e se conectando com outros contextos, é também como se sente Mayara Medeiros, diretora e produtora de cinema, quando encontra “o pornô perfeito”. Ocasionalmente, filmes eróticos fazem com que ela viaje. “Eu paro de perceber meu corpo, me teletransporto para a cena. Tem também uma sensação de quebra de paradigma. Mulher se masturbar é transgressão”, conta. A escritora Thaís Mayume experimenta sensação parecida com filmes de BDSM (bondage, disciplina, dominação, submissão, sadismo e masoquismo). “Essa prática ainda é tabu e vendo os filmes me sinto dentro de um grupo específico”, conta.
Para a ciência, pouco importa se nos sentimos parte de um clube sexual, de uma torcida de futebol ou nos aproximamos da natureza. A neuroquímica cerebral envolvida nas reações é basicamente a mesma. “A gente racionaliza demais o que é bom ou ruim para nós, mas muito disso é preconceito. Minha catarse assistindo a um pornô pode ser muito parecida com a de um evangélico durante um culto”, diz Mayara.
Pastor da Igreja Batista do Caminho (Rio de Janeiro) desde 2012, Henrique Vieira tem 31 anos. Filiado ao PSOL e colunista da Mídia Ninja, ele se afasta dos estereótipos que rondam os evangélicos no Brasil, sem negar o poder da vibração comunitária. “Em momentos profundos no culto, quando há comunhão, o tempo se dilui. Deus age nesse lugar que escapa da compreensão. Não diria que é algo irracional, e sim transracional, porque transcende a razão, não a contradiz. Deus está aí, mas não depende disso para existir”, conta.
O prazer que acompanha os estados de consciência alterada pode ganhar nomes diferentes de acordo com o contexto em que acontecem, mas é sempre fruto da explosão de serotonina e outros neurotransmissores no cérebro. Para os judeus, a sensação é chamada de sassom. “Em momentos de transe durante cantos e orações, sinto uma alegria que é um júbilo. Uma felicidade que não vem de nenhum entendimento, vem da inclusão, da percepção de fazer parte de um fluxo. Quando abandonamos as questões pessoais, encontramos o vínculo divino”, explica Nilton Bonder, rabino em atuação há mais tempo no Brasil e autor do livro A alma imoral.
É muito frequente que as imersões no lado B da consciência sejam interpretadas como místicas ou espirituais. E isso independe de religião. Rodrigo Resende é médico e surfista big rider. Desde os 12 anos, se joga no mar em busca de ondas cada vez maiores e se tornou um dos mais premiados brasileiros da categoria. Ele encara paredões de água de mais de 20 metros. Nessas horas, gosta de estar sozinho no mar. Quanto menos gente, maior é a interação de Rodrigo com essa força misteriosa que o atravessa. “Não é só físico. Sinto uma presença maior. Não sei se são espíritos, mas surfo com eles, através deles, eles comigo. Quando estou em harmonia com o planeta, eles me enviam a onda. Sinto que estou no lugar certo e tudo acontece em câmera lenta. Parece que vou cair, mas não caio. Sinto que alguém me segurou, que estão me guiando”, relata.
Bytes sobrenaturais
Na máquina da ressonância magnética, nossos cérebros são iguais: neurotransmissores produzidos comunicam células e desencadeiam uma tensão elétrica poderosa. A percepção das consequências desse fato, porém, é tão diversa quanto possível. Deus, gozo, gol, mar. Um abismo separa os pragmáticos acontecimentos cerebrais das interpretações individuais de cada transe.
Autor de sete livros sobre a filosofia da mente, o cientista Bernardo Kastrup questiona se a consciência é mesmo gerada pelo cérebro. “Não parece haver nada a respeito das partículas materiais, nem carga, nem massa, que nos leve a compreender as características das experiências individuais. Na minha visão, a consciência não é gerada por partículas cerebrais, ela é universal, sempre esteve na natureza, não depende de nada para existir, nem do cérebro”, arrisca.
A conclusão de que a consciência transcende a biologia humana é compartilhada também pelo monge Satyanatha. “Existe o plano físico, mas há outros canais. Com os treinos e a meditação, é possível começar a captar o resto da realidade e entender que não estamos presos na matéria. É a libertação do aprisionamento da matéria”, diz.
Seja matéria ou antimatéria, é fato que a consciência tem gigantesco impacto em nossas existências e que há ainda muito o que descobrir sobre a maneira como a percebemos. “Tem muita coisa não explicada porque a ciência ainda não chegou lá. Mesmo as experiências místicas vêm dos neurotransmissores”, defende Stevens.
Nascido nos anos 20, o norte-americano Julian Jaynes foi um dos principais filósofos da mente do século passado. Seu livro The origin of consciousness in the breakdown of the bicameral mind, de 1976, chamou a atenção por sua teoria sobre a origem da consciência humana. Ele acreditava que, durante certo momento da história, os Homo sapiens viveram sem se dar conta da própria consciência. Atribuíam a alucinações as vozes que existiam em suas cabeças e que lhes diziam o que fazer. O desenvolvimento da linguagem, especialmente da palavra eu, teria transformado essa realidade e gerado a noção de consciência como a entendemos hoje.
A teoria inspirou a série Westworld, que estreou mês passado sua segunda temporada, na HBO. A diferença é que, na obra, quem nota a própria consciência são os robôs, que até então só existiam para entreter humanos. “Máquinas cada vez mais inteligentes desenvolverão consciência? Seria uma grande quebra de paradigma”, arremata Stevens. Pra pensar…
Fonte: revistatrip.uol.com.br