Do livro Baús de Trocas
Os contos têm sido, cada vez mais, usados como instrumentos terapêuticos.
Crianças e adultos, contando ou ouvindo histórias, verbalizam seus sentimentos, que de outra forma, permaneceriam indefinidos.
A falta de vocabulário adequado ou desorganização de ideias impedem que venham à tona conflitos como medos e angústias que acabam aflorando através de desordens mentais e físicas.
As metáforas funcionam como um importante acesso aos conteúdos psíquicos, pois as mensagens nelas contidas chegam pela via lúdica e emocional.
Acompanhando a trajetória de um personagem de contos de fadas, a pessoa pode fazer suas próprias conexões e reinventar a própria vida.
BAÚS DE TROCAS
INTRODUÇÃO
Frequentando um hospital, convivi com pessoas que faziam quimioterapia. Usavam bonés para ocultar a careca. Fizeram uma escolha, os cabelos em troca da saúde. Trocaram um bem por outro mais urgente. A vida é assim, feita de escolhas e renúncias. Cada escolha implica uma renúncia. Bom é quando se pode resgatar um bem perdido lá no passado, guardado num Baú de Trocas.
Era uma vez…uma jovem.
Sem pais, irmãos, outros parentes, foi acolhida pela madrinha. Essa senhora não era propriamente má, simplesmente, pouco se importava com a jovem. Era-lhe indiferente o que a moça pensava, sonhava, sofria. Para compensar o teto e o pão, exigia que a afilhada fizesse todo o serviço doméstico. Apesar disso, moça sentia-se grata – encontrara um lar.
A jovem levantava-se antes do sol nascer e começava a lida. À tardinha, depois de todo o serviço pronto, cumpria a tarefa que lhe era, até, muito agradável – buscar água numa fonte, mais ou menos meia hora de caminhada. No quintal da casa havia um poço, mas, para beber, a madrinha exigia a água daquela fonte.
Pelo caminho, sentia o cheiro das flores, ouvia o canto dos pássaros, colhia e comia frutas silvestres. Na fonte, aproveitava para soltar, lavar e pentear seus longos cabelos, sempre presos debaixo de um lenço.
Algumas vezes, a moça viu, ali nas redondezas da fonte, uma velha bem parecida com uma bruxa, isto é, como lhe diziam ser as bruxas. Ela não lhe metia medo, acostumara-se à sua presença. A velha apanhava ervas e, ao se aproximar, cumprimentava-a com um sorriso maroto.
Um dia, a jovem pisou numa pedra escorregadia, levou um tombo e o pote, já cheio de água, foi ao chão. Quebrou-se em mil pedaços. Desesperada, pensava no desgosto
da madrinha. Sabia do seu apego àquela vasilha, herança da falecida mãe.
Ao ver as lágrimas da moça, a tal velha se aproximou:
– Eu tenho um pote idêntico. O que você me daria em troca?
– Moro de favor em casa de minha madrinha, nada tenho de meu.
– Tem sim, você tem lindos cabelos encaracolados. Eu lhe dou o pote em troca deles.
A moça aceitou e deixou que a velha os cortasse.
Perguntou:
– O que a senhora vai fazer com meus cabelos?
– Vou guardá-los nesse baú. Se algum dia, os quiser de volta é só me trazer o pote e desfazer a permuta. Eu moro numa casa depois da volta do rio.
A madrinha nem percebeu que o pote era outro e nem que a moça estava careca.
Passado algum tempo, falta de sorte, o novo pote escapuliu-lhe das mãos e se partiu em muitos pedaços. A velha, sempre por perto, falou:
– Na minha casa existe outro pote.
– Mas nada tenho para lhe dar em troca.
– Tem sim, tem um sorriso lindo, com dentes alvos como a neve. Dê-me os dentes e eu lhe darei o outro pote.
A moça deu-os de bom grado. Preferia perdê-los a decepcionar sua benfeitora.
Viu quando a velha os guardou numa caixinha igual à outra, dizendo:
– Quando quiser destrocar, já sabe.
A madrinha não percebeu que a moça estava sem os dentes, nem que deixara de sorrir.
A rotina continuou. A moça, como sempre, todas as tardes ia buscar água na fonte. Pelo caminho não mais se alegrava quando via as flores e os pássaros, nem comia os frutos silvestres. Na fonte, já não tinha cabelos para lavar e pentear.
Sua infelicidade parecia não ter fim: deixou cair e quebrar o terceiro pote.
Como se estivesse esperando pelo fato, a bruxa logo se fez presente:
– Ainda tenho outro pote. Igualzinho.
– Mas o que eu poderia lhe dar?
– O brilho de seus olhos.
E a moça deixou que a velha tirasse umas películas que envolviam seus lindos olhos azuis e viu quando a mulher as guardou noutra caixinha.
Como das outras vezes a madrinha não percebeu nem que o pote era outro e nem que a moça enxergava mal.
O tempo foi passando. A madrinha, bem idosa, adoeceu e morreu.
A moça ficou desolada. Chorou muito. Que seria dela?
Passou bastante tempo sem saber o que fazer.
Um dia, ao pegar o pote para buscar água na fonte ocorreu-lhe não precisar mais realizar aquela tarefa. Era a madrinha quem exigia a água da fonte para beber.
Lembrou-se das trocas feitas e da possibilidade de desfazê-las. Levando o pote, tomou o caminho indicado. A casa da velha lá estava, exatamente como dissera, depois da curva do rio.
– Trouxe-lhe o pote. Quero de volta o que lhe dei.
– Está certo. Mas foram três potes e só vejo um. Negócio é negócio. Eu lhe devolverei apenas uma das trocas. Escolha.
A moça pensou e concluiu: sentia muita falta da boa visão.
A velha levou-a a um cômodo de sua casa, onde uma grande quantidade de pequenos baús estavam bem organizados em cima de prateleiras. Todos levavam uma etiqueta especificando o conteúdo e o nome do antigo dono.
Nunca ocorrera à moça que pudesse existir tão esdrúxula coleção. Enquanto procurava sua preciosa caixinha, a velha explicava:
– Aí estão as permutas feitas nesses últimos anos. Eu guardo tudo com muito cuidado. Muitos donos aparecem para resgatá-las.
Quando a moça lamentou não dispor de algum bem para reaver também seus dentes e seus cabelos, a velha lhe propôs:
– Devolverei cada um deles por ano de serviço. Preciso de quem me ajude a cuidar destes baús.
A moça encheu-se de esperança. Recebia as pessoas interessadas em desfazer as trocas e se alegrava com a felicidade delas ao resgatar o bem de que se haviam privado.
Eram curiosos e variados os objetos de destrocas. Alguém chegava trazendo paixão e resgatava a tranquilidade. Outros traziam moedas de ouro e recuperavam o amor. Um rapaz chegou devolvendo o sucesso e querendo de volta a perdida paz.
Nessa ocupação a moça aprendeu muito sobre a vida e sobre as pessoas. Todos tinham uma longa história para contar.
No fim de um ano, teve seus dentes de volta e depois de mais outro, seus lindos cabelos encaracolados. Resgatara, principalmente, a alegria de viver. Mesmo cumprido o tempo combinado, a moça continuou naquela função. Sentia um enorme prazer em desempenhá-la.
Afinal, a velha, se era chamada de bruxa, exercia também um papel de fada.
Um dia, parou à porta daquela casa uma carruagem. Dela desceu um homem ricamente vestido. A moça recebeu-o e inteirou-se de seu desejo. Viera devolver “glória e poder” e buscar o que deixara como penhor: um sono tranquilo.
O homem foi narrando sua vida. Muitos anos se iludira correndo atrás do que pensava ser a felicidade. Descobrira que nada valia o antigo sossego. A moça, também, contou-lhe sua história: triste, desprovida de aventura, mas não menos interessante.
Consideraram que seus caminhos se cruzavam em boa hora. Poderiam ser felizes juntos. A bruxa, ou fada, ajudou-a a se decidir.
– Se partir nesta carruagem irá ao encontro da felicidade que você tanto merece.
A profecia se cumpriu, o homem era um fidalgo, tanto no sangue quanto no caráter. Eles se casaram e foram muito felizes.
Este conto é de autoria de Marilene Lemos extraído de seu livro Baús de Trocas. Ele tem sido usado como instrumento pedagógico e terapêutico para trabalhar mudanças e perdas significativas na vida.
* Marilene Lemos é pesquisadora, escritora, palestrante e contadora de histórias, Membro da Academia Feminina de Letras de Minas Gerais, Membro da Academia Municipalista de Letras de Belo Horizonte, Membro do Instituto Histórico Geográfico de Minas Gerais, Presidente das Amigas da Cultura de Belo Horizonte, Faz parte do Grupo “Conto e Encontro” que atua em hospitais, instituições e grupos de convivência. Livros publicados: A Vida Transformada em Histórias, onde fatos da vida real e atual viram metáforas, usando elementos dos contos de fadas tradicionais; Baús de Trocas, livro de contos terapêuticos indicado para a Feira Internacional de Bolonha e adotado em várias escolas; A Cidade que ficou na Memória, livro de crônicas; Belo Horizonte nos Anos Dourados, dentre outros.
1 Comment
Nada como o tempo para resignificar nossas perdas e permitir um recomeço…assim é a vida…