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Mente, Cérebro e a Prática Psicológica

Por: J. Landeira-Fernandez e Antônio Pedro de Mello Cruz

Há muito tempo que a neurociência sabe que não existe atividade psicológica independente de atividade neural. Uma das principais conseqüências destes achados para o psicólogo em geral e o psicólogo clínico em particular é a de que toda prática psicológica é, na verdade, uma prática que altera o funcionamento dessa atividade neural.

Esta posição não implica em uma mudança na prática psicoterápica, conforme vem sendo tradicionalmente utilizada. O que muda é a forma de encarar o problema, levando-se em conta fatores biológicos como variáveis importantes na atividade mental. Esta posição também não reduz a atividade psicológica a mecanismos puramente biológicos. A própria natureza da área de estudo da psicologia impede tal reducionismo. Tal posição, portanto, não está em desacordo com teorias que sustentam que a personalidade humana seja fruto das suas relações sociais. Isto, na verdade, é a própria essência da psicologia. O erro, no entanto, está em ignorar o fato de que relações sociais direcionam a formação da personalidade graças ao seu impacto no desenvolvimento, organização e funcionamento neural do indivíduo. Esta posição dá vida nova ao profissional da área da saúde mental e ajusta a sua prática às descobertas e tendências atuais de se encarar a atividade mental humana, ampliando seus horizontes, já saturados, com posições filosóficas que conferem características à mente humana e que atualmente resultam numa limitação da prática e atuação do psicólogo clínico.

O cérebro começa hoje a ser descoberto e entendido de forma mais sistemática graças aos avanços técnicos e à natureza interdisciplinar da neurociência. Dentre estas descobertas está a enorme importância do meio ambiente e das relações sociais no desenvolvimento, organização e funcionamento do sistema nervoso. A prática psicológica, ou qualquer outra relação social que tenha um impacto na atividade mental do sujeito, tem a capacidade de promover alterações na atividade neural desse indivíduo. Essas alterações estão associadas a mudanças na comunicação neural, promovendo uma espécie de reeducação sináptica. Desta forma, a classe dos psicólogos como um todo, e a dos clínicos em especial, deveria levar conta todo esse avanço que a neurociência vem promovendo neste início de século.

Calcado nessa interpretação, é importante que o psicólogo tenha também uma boa formação na área biológica, principalmente em relação ao sistema nervoso, visto que nele reside não somente a origem da atividade mental, mas também o objeto da sua prática. O fato do psicólogo clinico de hoje não ter sido preparado adequadamente para lidar com questões relacionadas com a atividade neural não pode servir com justificativa (consciente ou inconsciente) de que uma preparação mais arrojada nessa área não seja importante para sua formação profissional. O psicólogo deve despertar para a necessidade de incorporar à sua área de ensino o conhecimento que vem sendo desenvolvido pela neurociência e em especial, pela psicofarmacologia. É óbvio que tanto melhor será sua preparação acadêmica quanto maior for sua possibilidade de aplicação esse conhecimento.

Dessa forma, é necessário que o psicólogo clinico, além de melhorar sua formação acadêmica dentro do campo biológico, tenha também o direito de empregar de forma adequada desse conhecimento, podendo ter, inclusive, o direito de prescrever drogas psicotrópicas. Mas antes da conquista desse direito, a nossa classe deve se convencer da importância das variáveis biológicas na determinação da atividade mental do sujeito. Hoje não existe essa possibilidade graças ao curriculum que enfatiza o treinamento acadêmico para a pesquisa (que nem sempre é devidamente aproveitado) e um treinamento, talvez um pouco exagerado, na área da filosofia.

Interessante é que o treino na própria clinica durante o curso de psicologia é restrito. Isto, na verdade, nos faz levar a uma outra discussão que transcende o objetivo desta minha apresentação: a psicologia é uma ciência básica, tal como a física, química ou biologia, ou uma ciência aplicada tal como a veterinária, medicina engenharia ou odontologia? Se realmente a psicologia pretende ser uma ciência aplicada, deverá, sem dúvida, ajustar seu curriculum à essa necessidade. Nesse sentido, já existem hoje movimento nos Estados Unidos demonstrando o desejo de muitos psicólogos de alterar o curriculum de psicologia, incorporando disciplina que dêem a este profissional a formação necessária para prescrever drogas psicotrópicas. Por exemplo, a Associação Americana de Psicologia vem decidindo paulatinamente dar continuidade ao desenvolvimento de modelos curriculares e legislativos capazes de justificar a obtenção do direito do psicólogo prescrever drogas psicotrópicas.

Lembrem-se, aqueles que são contra essa idéia, que o direito de prescrever drogas psicotrópicas é também o direito de não prescrevê-las. Dessa forma, não é meu objetivo fazer uma apologia sobre o uso ou não de drogas psicotrópicas no tratamento de disfunções mentais ou que o psicólogo clinico deva se transformar numa espécie de psiquiatra que conseguiu “escapar” da faculdade de medicina. Pretende-se, na verdade, mostrar ao psicólogo que sua prática, por  mais imaterial que possa parecer, produz efeitos físicos através da alteração do funcionamento do tecido neural. A  aquisição de conhecimento neurobiológico é fundamental para que o psicólogo possa realmente compreender como ocorre essa interação entre cérebro e meio ambiente, possibilitando o desenvolvimento de novas técnicas psicoterapeuticas. O direito de utilizar diretamente esse conhecimento relacionado com o desenvolvimento, organização e funcionamento do sistema nervoso, através da prescrição de drogas psicotrópicas, será apenas conseqüência do fortalecimento da sua preparação acadêmica ao longo do curso de psicologia.

É bem verdade que existem sistemas que determinam uma formação mais aprofundada do psicólogo clinico. Por exemplo, o sistema americano, diferentemente do brasileiro, somente habilita o psicólogo clinico exercer suas funções após o término do doutorado, quando ele é submetido a uma série de exames impostos pela sociedade psicológica regional a fim de verificar sua competência para exercer a função clinica. Dessa forma, o sistema americano permite uma melhor preparação e seleção do profissional, o que, por conseqüência, permite ampliar o seu curriculum  acadêmico. O objetivo desta apresentação não é de tentar responder se esse sistema deveria ou não ser adotado no Brasil. Meu objetivo é o de mostrar ao psicólogo clínico que sua prática tem conseqüência direta no tecido neural possivelmente através dos mesmos mecanismos que drogas psicotrópicas atuam na atividade psicológica. Assim, deve ser objetivo de um curso de psicologia oferecer uma boa formação em disciplinas relacionadas com a neurobiologia.

É óbvia que a decisão de enriquecer o curriculum de psicologia com disciplinas de cunho biológico é uma decisão extremamente complexa e envolve outros interesses que não os puramente profissionais. No entanto, não será a primeira vez que a psicologia irá lutar por direitos que justifiquem a sua existência como ciência independente. Somente aqueles com consciência e dedicação profissional, cujo objetivo está voltado não para os seus interesses e crenças pessoais, mas sim para o progresso e desenvolvimento da sua classe, é que saberão, hoje, tomar decisões equilibradas a fim de que os horizontes do pensamento e da prática psicológica possam ser ampliados em um futuro próximo.

Fonte: https://cerebromente.org.br/

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