O carnaval e a importância dos ritos - Ciclo CEAP

O carnaval e a importância dos ritos

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O carnaval e a importância dos ritos

Para Jung, os rituais facilitam a conexão entre nossas realidades interiores e exteriores, assim como entre os mundos conhecidos e desconhecidos 

Por Carlos São Paulo

No Brasil, o carnaval se expressa de um jeito próprio para cada região. É tão diversificado quanto a variedade de suas tradições. Em todos os lugares, podemos viver momentos encantados, muitas vezes perdidos lá na ingenuidade de nossas infâncias. Em nenhum espaço faltam as diversões e fantasias. Podemos participar ou assistir ao trio elétrico com os seus blocos, a Timbalada, as escolas de samba e o sambódromo, o maracatu, o frevo, o carnaboi e o boi-bumbá, etc. Com todos esses estilos e um só povo, expressamos a alegria de existirmos como uma nação, transformando as diferenças sociais em um só grito de alegria para dizer ao mundo que estamos vivos e que, neste país, o calor humano é intenso.

Essa festa brasileira, luso-afro-ameríndia, sofreu a influência da França, que se manteve hegemônica na forma de fazer carnaval. Portugal nos trouxe o entrudo e, da comédia teatral, o Rei Momo; além do zépereira, tocador de bumbo, que revolucionou o carnaval carioca e deixou a herança rítmica da cuíca, do pandeiro, do reco-reco e de outros. Também a Comédia Italiana influenciou com suas colombinas, pierrôs e os arlequins. Esta mistura de costumes e tradições tão diferentes faz do nosso carnaval o mais famoso do mundo.

Foi o que nos mostrou um estudo folkmidiático (III Conferência Brasileira de FolkComunicação, 2001).

No Brasil, o carnaval é irreverente, criativo e popular. Muitos ligam esta festa a espíritos malignos. Outros indivíduos a relacionam a uma liberdade plena de expressão e até se ressentem do fato de que em alguns lugares é uma festa a mais para se assistir, enquanto em outros lugares é para ser vivenciada.

Carl Gustav Jung chamou a linguagem de que é feita a matéria dos nossos sonhos e fantasias de “pensamento não dirigido”. É um pensamento bem oposto ao do intelecto e ao da exposição e intuições. Nele, as regras da Lógica e da Física não se aplicam e nem tampouco os preceitos morais. À medida que saímos da infância, somos iludidos pelo “pensamento dirigido” e, sem saber, nos escravizamos às manipulações de marketing ( Jung, 1973). Para uma ilustração sobre a nossa necessidade de viver o mundo encantado, bom seria assistir a um filme em casa. Algumas vezes, temos de interrompê-lo para atender ao telefone ou a outras solicitações. Quando vamos ao cinema assistir ao mesmo filme, ficamos em uma fila, compramos pipoca e depois entramos na sala escura em meio a tantas pessoas desconhecidas. Provavelmente estaremos nos aproximando mais desse mundo das trevas que habita o nosso interior e, dessa forma, o exterior e o interior se unem para mergulharmos nas emoções do filme e vivenciar de forma mais intensa a importância dos rituais.

Durkheim (1996), pai da Sociologia moderna, ao analisar os ritos, nos diz que a partilha de um sentimento comum é a única coisa importante no ritual. Aproxima-os das representações dramáticas e das recreações coletivas. Tais rituais fazem que os homens se esqueçam do mundo real para se transportar para outro mundo, onde a sua imaginação fica mais à vontade. Para ele, toda festa, mesmo que seja laica em suas origens, tem certos caracteres da cerimônia religiosa, pois traz a efervescência e o delírio, que também acontecem no estado religioso.

Para Jung (1973), os rituais facilitam a conexão entre nossas realidades interiores e exteriores, como também entre os mundos conhecidos e desconhecidos. Observou que o homem primitivo (homem-criança) sempre recorreu a ações ritualísticas, tais como danças, cantos, identificação com os espíritos, etc. Esses mitos são coordenados por uma tendência humana para organizá-los, independentemente da cultura, em um comportamento padrão que sempre existiu e sempre existirá, chamado por Jung de “arquétipo”.

PARA SABER MAIS
Carnaval de rua
 

Ferreira (2004) relata que “o Diário de Pernambuco, de 1º de março de 1852, sugeria que a pessoa que quisesse se divertir às vésperas da Quaresma vestisse sua fantasia e passeasse pelas ruas antes de se dirigir ao baile de máscaras”. Com essas pessoas mascaradas transitando pelas ruas, nasceu o carnaval de rua com as suas brincadeiras. Anteriormente, existia um divertimento trazido pelos portugueses, denominado de Entrudo. Era brutal e indesejável, pois não apenas se enchiam bexigas (limões de cheiro) com perfumes, para atirar nas paqueras, como também enchiam essas bexigas de urina e fezes para atirar nos outros. Foi a partir de 1830 que o Entrudo passou a ser perseguido, mas só deixou de ocorrer de fato em meados do século XX, com o início do carnaval de rua e a chegada dos lança-perfumes produzidos na Argentina, mas que também foram proibidos mais tarde pelo então presidente Jânio Quadros.

 

Miscigenação de cultura marca os ícones do carnaval brasileiro. Portugal trouxe o Entrudo e, da comédia teatral, o Rei Momo, além do Zé-Pereira. A Comédia Italiana, por exemplo, trouxe as colombinas, os pierrôs e os arlequins


Primórdios da festança

O carnaval surgiu séculos depois que a Igreja Católica, no ano de 604, na figura do Papa Gregório I, determinou um período do ano para os fiéis deixarem de lado a vida do cotidiano. Nesse período, hoje chamado de Quaresma, os fiéis deveriam dedicar-se só às questões espirituais, para lembrar os 40 dias de jejum e provações de Jesus no deserto. No ano de 1091, já com o papa Urbano II, se fixou uma data ofi- cial para o período da Quaresma. O primeiro desses dias passou a ser chamado de Quarta-Feira de Cinzas. No entanto, para compensar as privações dos prazeres mundanos, surgiu, por parte dos fiéis, outro ritual, precedendo a esse último, para viverem a polaridade oposta. Podese imaginar o aumento do consumo das carnes, além dos chamados “pecados da carne”. Talvez por isso, esses últimos dias de fartura começaram a ser chamados de dias do “adeus carne” que, em italiano, se diz dias da “carne vale” ou do “carnevale”. Essa é uma das explicações para a origem do nome desse ritual, bem como para a sua própria existência (Ferreira, 2004).

 

Arquétipos deJung

C.G. Jung trouxe importantes contribuições para a abordagem da arte, com sua proposta de compreender a psique por meio das figuras da imaginação e não apenas pelas palavras. Sua concepção sobre arquétipos fala de modelos preexistentes na psique, permitindo aos humanos viverem suas experiências paradoxalmente criativas e previsíveis. Previsíveis por suas formas modulares e universais, mas também criativas para existirem em sua singularidade. Isto porque os arquétipos, reveladores de profundas verdades individuais e coletivas, podem ser vivenciados de inúmeras formas e expressos em infinitas imagens, com poderes transformadores, chamados por Jung de “símbolos”. Ao longo dos tempos os humanos valerem-se de mitos, contos de fadas, lendas e folclore, recheados de imagens arquetípicas, para explicar os mistérios de vida; para transmitir e preservar valores.

Podemos, então, conceber a ideia de dois rituais opostos entre si. Em nossa psique, uma mesma realidade é cindida em dois opostos irreconciliáveis: amor/ ódio, morte/vida, confiança/traição, puerilidade/sabedoria, profano/sagrado, dentre outros. Nenhum polo poderá existir sem o outro ser considerado. A totalidade a que os junguianos chamam de si-mesmo é um arquétipo que busca a não exclusão de tudo o que pertença à vida. Assim, vivemos para unir “carnaval” e “Quaresma”, ou o profano e o sagrado, como podemos apreciar no verso da canção: “A gente se embala. Se embora e se embola. Só para na porta da igreja”. Em nossas vidas, quanto mais um desses lados se acentua sobre o outro, mais o lado esquecido procura ser lembrado, apresentando-se como sintomas incômodos.

O carnaval, então, teve a sua força no místico cristão, que mortificou o corpo com a ideia de reprimir e negar os desejos naturais, criando o conceito de um Deus contra a natureza, e de uma natureza contra Deus, para alcançar a vida espiritual. No entanto, o próprio movimento da psique, regido pelo si-mesmo, encaminha o comportamento para evitar a unilateralidade. Um dos estudos de Jung foi categorizar o humano pela forma predominante de como usa a sua consciência. Quando a consciência prefere atuar sobre o mundo, chamou-a de “extrovertido”. E quando a consciência prefere entender a atuar sobre o mundo, designou-a de “introvertido”. Essas duas forças podem nos inspirar a olhar algumas culturas como a dos povos do Tibete – mais voltados à introversão -, enquanto nós, brasileiros, preferimos a extroversão. Assim, está claro afirmar que para algumas culturas introvertidas, um ritual como a “Quaresma” é mais fácil de ser vivido do que o carnaval, enquanto para outros povos, como o do Brasil, acontece o contrário, a preferência recai sobre o ritual extrovertido e, talvez por isso, tudo acabe em festa.

Psicologia dos foliões
No Brasil, por exemplo, é difícil se aceitar alguém com a sua lentidão no corpo e na psique. Tal pessoa pode ser rotulada de depressiva e muitas vezes medicamentos a ela são prescritos. Por ser introvertido pode, muitas vezes, não se adequar ao convite incessante do samba e de outras baladas da vida voltadas ao mundo das satisfações, dos negócios e do poder. No entanto, Jung afirma que os ritos religiosos, quando entendidos simbolicamente, ao contrário de ser uma fonte de ilusão, podem levar o sujeito a uma verdadeira imersão no mundo misterioso da introversão, permitindo cada vez mais tornar-se si-mesmo. A religião que provoca a culpa é fruto de uma consciência que confunde o interior com o exterior e projeta o sagrado no mundo externo.

Segundo López-Pedraza (2002), a tendência para a extroversão se traduz em uma necessidade compulsiva de sobrevivência, enquanto para se introverter e entrar em contato com essa faísca divina no interior, utiliza-se de métodos repressivos, ou até mesmo de flagelação, para se conseguir refrear esse movimento. Nossa cultura não se desenvolveu em direção à vida interior. Muitas seitas são apenas expressões do mesmo impulso extrovertido que nos legou a evolução humana nesses milhões de anos. Portanto, viver a vida interior seria fruto do esforço do ego em prol do alargamento da consciência, com o objetivo de se tornar a si-mesmo, ou seja, aquilo que Jung chamou de “individualizarr-se”.

Os junguianos recorrem aos mitos para compreender a psique do homem. Trata-se de usar uma linguagem metafórica representativa do pensamento arcaico, como se toda a humanidade tivesse tido um sonho. Da mesma forma, em um indivíduo, buscamos compreender as imagens dos seus sonhos e dos pensamentos-fantasias. Recorremos a um desses mitos para refletir sobre o carnaval como um ritual. Trata-se do mito de Dioniso ou Baco. Essas imagens míticas são fontes inesgotáveis de significados para permitir a compreensão dos fenômenos humanos nelas implicados.

PARA SABER MAIS
A magia das fantasias
 

Nas ruas, em lugar das fardas do cotidiano, temos a liberdade das fantasias. Como diz DaMatta: “É a fantasia que permite passar de ninguém a alguém; de marginal do mercado de trabalho a figura mitológica de uma história absolutamente essencial para a criação do momento mágico do carnaval” (DaMatta, 1984, p.64). Jung utilizou o termo Trickster para traduzir a inversão da ordem hierárquica e suas predileções pelos chistes e anedotas ardilosas com as brincadeiras maliciosas. Por meio da estupidez, o Trickster consegue o que outros, com seriedade, deixam de conseguir. É um arquétipo que traduz aquilo que, ao mesmo tempo em que é bobo, é também sábio. Em nosso carnaval de rua, no lugar do Entrudo, o Trickster aparece sob a forma de sátiras criativas aos políticos, por exemplo, e também a outras situações merecedoras de contestações.

 

Durkheim explica que rituais como ir ao cinema e pular carnaval fazem que nos esqueçamos do mundo real para nos transportar para outro mundo, onde a imaginação fica mais à vontade
Espíritos malignos ou liberdade completa de expressão, o carnaval em todo o Brasil divide opiniões e, graças a isso, volta a atenção do País inteiro enquanto passa pelas ruas

Estado de êxtase
O culto a Dioniso é marcado pelo entusiasmo e o êxtase, por isso a devoção a esse deus sofreu oposição da aristocracia, quando tal culto surgiu no oitavo século antes de Cristo. As cerimônias em sua homenagem eram festas da primavera e do vinho. Dançavam, desmembravam animais e comiam suas carnes cruas, alcançando um estado de êxtase.

De acordo com López-Pedraza (2002), essa manifestação das energias vitais, no culto dionisíaco, se expressa de várias formas: pela dança (a expressão do corpo mais arcaica, intuitiva e emocional); pelo teatro, onde é necessário se sentir em seu próprio corpo na emoção vivida, permitindo, por meio da máscara, que a individualidade fique oculta, concedendo a permissão para comportamentos normalmente inaceitáveis; pelo sexo, a união sexual compreende a suspensão da dualidade e promove o retorno à unidade do princípio a um estado de identidade representando a androginia primordial. No mito, o deus Dioniso foi despedaçado pelas mãos dos Titãs. Essa é uma imagem muito conhecida na Psiquiatria quando se fala sobre a fragmentação do ego nas doenças mentais. A psique ficou cindida em pedaços, o que vem caracterizar a loucura.

Os junguianos recorrem aos mitos para compreender a psique do homem. Trata-se de usar uma linguagem representativa do pensamento arcaico, como se a humanidade tivesse tido um sonho

A loucura do carnaval é parte dessa necessidade humana de se libertar dos padrões vividos no cotidiano. No diálogo platônico Fedro, “Sócrates afirma que conhecemos dois tipos de loucura: uma que deriva dos males humanos e, outra, quando o Céu nos liberta das convenções estabelecidas” (López-Pedraza, 2002, apud Platão, 1973, p. 265).

Outro conceito junguiano a ser considerado no carnaval é o par de opostos arquetípicos denominado Persona / Sombra. A Persona é a máscara de como queremos ser vistos pelo outro, enquanto a Sombra é tudo o que não se tem o desejo de ser. No carnaval de rua, as fantasias permitem brincar com a sombra e até se proteger por meio de máscaras literais.

Carlos São Paulo é médico (UFBA) com especialização em Psicologia Analítica. Diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia.

Referências DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? RJ: Rocco, 1986. 111 p. DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. SP: Martins Fontes, 2003. FERREIRA, Felipe. O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro. RJ: Ediouro, 2004. GOMES, Antônio H. de C. As Transformações do Samba-Enredo Carioca: entre a crise e a polêmica. 2006. 137 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Letras, Departamento de Letras, Psicologia, RJ, 2006. III CONFERÊNCIA BRASILEIRA DE FOLKCOMUNICAÇÃO, 2001, João Pessoa. Imagens norte-sul do carnaval: estudo de um fenômeno brasileiro de folkmídia. João Pessoa: UFPB, 2001. JUNG, C. G.. Símbolos da Transformação. Petrópolis – RJ: Vozes, 1973. LÓPEZ-PEDRAZA, Rafael. Dioniso no Exílio. SP: Paulus, 2002.

Fonte: Portal Ciência e Vida

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