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Reflexões sobre liberdade e determinismo

cerebro

 

As neurociências tem se apresentado, na atualidade, como um conjunto de conhecimentos capaz de explicar praticamente tudo: o amor e

o ódio, a alegria e a tristeza, o prazer e a dor, o preconceito e a tolerância, a saúde e a doença, os transtornos “mentais” (ou serão cerebrais?) e até mesmo o sucesso e o fracasso – vide o recém-lançado livro “O efeito vencedor: como a neurociência explica o sucesso (e o fracasso)”.

Outra questão importante sobre a qual os neurocientistas tem se debruçado há décadas é: como realizamos nossas escolhas? Mas eis que alguns pesquisadores chegaram à inesperada conclusão de que nós não escolhemos. Quem escolhe é nosso cérebro!  Diante desta “descoberta” intrigante, algumas reflexões se fazem necessárias: se é o cérebro que toma as decisões, qual o nosso papel no processo de escolha? Existe um “eu” que escolhe? Ou será o livre-arbítrio apenas uma ilusão? Somos agentes de nossas ações? Ou somos simplesmente manipulados por nosso cérebro, que é “aquele” que, em última instância, toma todas as decisões? Afinal, quem está no comando, ele ou nós? Ou ele e nós, juntos?

O confronto liberdade versus determinismo é antigo e já se manifestou de diferentes formas no decorrer do tempo. O que há de novo – aliás, nem tão novo assim – é a afirmação de alguns neurocientistas de terem provado experimentalmente a perspectiva determinista. Em um experimento clássico conduzido na década de 80, Benjamin Libet demonstrou que regiões do cérebro responsáveis pela ação motora eram ativadas uma fração de segundos antes da decisão consciente ser tomada e de a ação ser realizada. Este achado foi utilizado para demonstrar o quanto o processo volitivo é, pelo menos, iniciado de forma inconsciente, tornando-se consciente posteriormente. Outras interpretações apontaram para a total determinação cerebral das nossas escolhas, sendo o livre-arbítrio e a noção de um “eu” que toma decisões considerados apenas ilusões. Estudos posteriores apontaram, na mesma direção, que a atividade cerebral precede e determina nossas escolhas conscientes. No entanto, tais experimentos suscitaram inúmeras críticas, desde relativas à metodologia utilizada, até críticas epistemológicas. Klemm, por exemplo, afirma que “não é porque escolhas subconscientes são feitas antes da consciência em uma tarefa, que temos a prova de que toda a vida mental é governada desta maneira”. Já para o filósofo João Fernandes Teixeira, no recém-lançado “Filosofia do cérebro”, o experimento de Libet contribui muito pouco com o debate liberdade-determinismo. Para ele, “as conclusões que ele quer extrair de seu experimento extrapolam o que ele efetivamente pode comprovar. Na verdade, seu experimento só nos permite concluir, no máximo, que podemos reconstruir uma história causal entre uma ação, o evento que a precede no cérebro e seu relato posterior”. No entanto, tal história causal não permite uma associação determinista entre evento cerebral, intenção, ação.

Esta noção de que é o cérebro que está no comando tem se disseminado. Não é incomum, atualmente, encontrar em sites, revistas e livros voltados para o público leigo, expressões que antropomorfizam o cérebro como “o cérebro escolhe”, “o cérebro faz”, “o cérebro pensa”, “o cérebro aprende”, etc, como se o cérebro tivesse vida própria e tomasse as próprias decisões, a despeito de seu “dono”. Um sujeito postou estes dias no Twitter uma frase que expressa bem essa idéia: “Vocês sabiam que o cérebro é o único órgão do corpo que escolheu seu próprio nome?”. Nota-se uma completa identificação do que somos com o nosso cérebro: é o cérebro que escolheu seu próprio nome, não nós (critico desta visão, o neurocientista Steven Rose afirma que falar que o “cérebro pensa” é equivalente a dizer “a perna anda”. Para ele, “nós” pensamos através do cérebro, assim como andamos “com” nossa perna). Conforme aponta o filósofo Francisco Ortega, o cérebro vem se tornando, mais do que um simples pedaço de carne, um verdadeiro ator social configurando-se, na cultura ocidental contemporânea, como o órgão central na definição de nossa identidade pessoal, fenômeno chamado pelo antropólogo Rogério Azize de “cerebralismo”, face específica de um mais amplo “fisicalismo”. Este processo culmina no entendimento reducionista de que “eu sou o meu cérebro”. Segundo Ortega, tal afirmação tornou-se auto-evidente em função de um contexto em que emerge uma verdadeira neurocultura, na qual explicações cerebrais tem privilégio sobre outras formas de compreensão da realidade. Para Ortega, neste contexto, há a surgimento do que ele e outros autores denominam de sujeito cerebral, “figura antropológica que incorpora a crença de que o ser humano é essencialmente reduzível a seu cérebro”. Neste sentido, sendo o cérebro considerado o órgão central de nossa identidade e, além disso, o responsável por todas as nossas decisões e comportamentos, caberia ainda a noção de um “eu” livre e que toma decisões?

Segundo outro filósofo, o Slavoj Zizek, no livro “Visão em Paralaxe”, toda decisão tem causas, sejam motivações internas ou causas naturais, mas o que indica a liberdade de uma ação não é a lacuna entre estas causas e minha escolha consciente, mas a capacidade de escolher retroativamente quais causas irão me determinar. E mais, para o autor, liberdade não significa liberdade de se fazer o que quiser irrestritamente, mas fazer o que não se quer, frustrando a “realização ‘espontânea’ de um ímpeto”. Um ato é livre quando não é espontâneo, “natural”, intuitivo. Para ele, fazer o que se pede é obediência, fazer o que não se pede ou o que não se quer fazer é liberdade. A verdadeira liberdade, para Zizek, consiste em um ato negativo de dizer não, interrompendo a execução de uma decisão, bloqueando “nossa tendência direta”.

De uma forma ampla, e a partir da perspectiva hegeliana, o autor entende liberdade como autolimitação ativa (autodeterminação), oposta à uma limitação externa (ser-determinado-pelo-outro). Em seu aspecto mais radical, aponta Zizek, a questão da liberdade é a questão de como se pode escapar do “círculo fechado do destino”. Uma possibilidade é entender que tal círculo não está completamente fechado e buscar brechas. Mas a saída, para o autor, é aceitar o destino como inevitável, renunciando a qualquer tentativa de escapar de seus designos. Paradoxalmente, aceitar o destino faz com que possamos escapar dele. Da mesma forma, para escaparmos da programação genética/cerebral devemos não nos opor à ela ou violá-la, mas aceitá-la. Só aceitando que a liberdade é “programada” podemos nos tornar livres. De certa forma, para sermos livres temos que estar conscientes de que não somos totalmente livres e que somos em grande parte determinados por questões que não controlamos e nem podemos controlar. Na contramão da máxima behaviorista de que “sou livre na medida em que controlo as condições que me controlam”, é como se Zizek dissesse: “Sou livre na medida em que NÃO controlo as condições que me controlam” ou “Sou livre na medida em que me abstenho de controlar as condições que me controlam”. Gosto desta perspectiva: ao aceitarmos que somos determinados nos tornamos livres.

Felipe Stephan Lisboa
(Psicólogo, especialista em Ciências Humanas e Saúde pela UFJF)

Psicologia dos Psicólogos – “Eu sou meu cérebro?”

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