A neurocientista americana que sofreu um derrame e observou em detalhes a deterioração de sua mente relata a experiência e mostra como ajudar as vítimas desse mal
“No primeiro momento, fiquei aflita. Depois, pensei: quantos cientistas têm a oportunidade de estudar as funções cerebrais de dentro para fora?“
Na manhã de 10 de dezembro de 1996, aos 37 anos, a neurocientista americana Jill Bolte Taylor, da Universidade Indiana, acordou com uma dor aguda na cabeça. Com seus conhecimentos, logo deduziu que estava sendo vítima de um derrame cerebral. Durante quatro horas, a cientista viu seu cérebro deteriorar-se enquanto tentava pedir ajuda. Nesse período, pôde observar por dentro, como protagonista, aquilo que havia estudado durante toda a vida – o funcionamento das regiões do cérebro e o que acontecia quando cada uma delas parava de trabalhar. Hoje, depois de uma incansável batalha pela cura, ela recuperou completamente suas funções físicas e mentais, sem nenhuma seqüela. A experiência lhe rendeu um livro, A Cientista que Curou Seu Próprio Cérebro, que vendeu 500 000 cópias nos Estados Unidos e foi lançado há pouco no Brasil. Jill deu a seguinte entrevista a VEJA.
Como a senhora percebeu que estava sofrendo um derrame cerebral?
Acordei com uma dor aguda na cabeça, bem atrás do olho esquerdo. Depois, percebi que minha coordenação muscular estava prejudicada. Quando entrei no chuveiro e abri a torneira, ouvi um estrondo, mas era só a água caindo. Juntando os três sintomas, e baseada na minha experiência como neurocientista, percebi que poderia estar sofrendo um derrame. No fim daquela manhã, já não conseguia andar, falar, ler, escrever ou lembrar informações básicas da minha vida, como quem era minha mãe, nem sequer o que a palavra mãe significava.
O que estava acontecendo em seu cérebro naquele momento?
O hemisfério esquerdo foi afetado. Ele é o lado racional, responsável pelo processamento das informações em forma de linguagem. Usa as palavras para classificar cada elemento do mundo ao nosso redor. Como essa parte se alterou, eu não era capaz de falar nem entender o que as outras pessoas diziam. O hemisfério esquerdo também abriga as células responsáveis por percebermos os limites de nosso corpo. Com o derrame, aos poucos o hemisfério direito do cérebro, que entende o mundo pelo lado emocional, começou a prevalecer. Na ausência do julgamento racional do hemisfério esquerdo, minha mente alternava momentos de consciência com outros de euforia, uma sensação de haver alcançado uma espécie de nirvana.
Em seu livro, a senhora descreve que, nas primeiras horas após o derrame, os sons, cheiros e luzes se tornaram torturantes. Qual é a explicação para isso?
Meu cérebro já não era capaz de processar os estímulos corretamente. Em condições normais, eles são transmitidos por diferentes grupos de células, que os filtram e refinam. Quando meu cérebro foi lesionado, o sangue se espalhou entre os neurônios e interrompeu a filtragem. Como conseqüência, os estímulos não podiam ser percebidos normalmente, o que tornou o contato com o mundo exterior uma experiência de completo caos e dor. Respirar fazia com que minhas costelas ardessem, e a luz que penetrava nos meus olhos parecia queimá-los.
“Os médicos não são treinados para lidar adequadamente com os pacientes de derrame, sobretudo quando o hemisfério esquerdo é afetado e o doente não consegue falar ou comunicar o que está pensando”
O fato de entender o que estava ocorrendo em seu cérebro contribuiu para acalmá-la ou a deixou ainda mais preocupada?
No primeiro momento, fiquei aflita e pensei: “Meu Deus, isto é um derrame!”. No instante seguinte, surpreendi-me pensando que a situação era muito interessante. É estranho, mas fiquei animada quando me dei conta de que aquilo tudo que eu estava experimentando tinha uma base fisiológica e uma explicação. Pensava: “Quantos cientistas têm a oportunidade de estudar as funções do cérebro e sua deterioração de dentro para fora?”. De fato, como neurocientista, durante o derrame aprendi tanto sobre o funcionamento do cérebro quanto havia aprendido em todos os meus anos de estudos. Naquele momento, a porção egoísta abrigada no hemisfério esquerdo do meu cérebro ainda acreditava que eu não morreria e que só ficaria longe de minhas atividades normais durante uma semana. Depois, fui me dando conta de que poderia morrer. Mas, à medida que era inundada pelo sentimento de libertação trazido pelo lado direito do cérebro, vivia momentos de paz. Neles, não havia medo da morte.
Como a senhora consegue se lembrar de detalhes do processo de deterioração de seu cérebro?
Em primeiro lugar, porque em nenhum momento fiquei inconsciente. Perdi o hemisfério esquerdo, que pensa em forma de linguagem, mas o hemisfério direito, que pensa em forma de imagens, guardou uma espécie de videoteipe da manhã do derrame. Então, o que tive de fazer durante a recuperação foi repassar esse vídeo com o auxílio de um profissional, que me ajudou a adicionar as frases correspondentes para descrever o que acontecia, tais como: “Eu me levantei, eu senti, eu vi”. Foi como rever o videoteipe acrescentando a trilha sonora.
Que habilidades do dia-a-dia foram comprometidas pelo derrame?
Como muitas vítimas de derrame, eu conseguia escrever, mas não era capaz de ler. Isso acontece porque o circuito da escrita em nosso cérebro é separado do circuito da leitura. Eu só conseguia digitar mensagens básicas no computador. A escrita manual envolve o controle motor do hemisfério oposto à mão com que você escreve. Como sou destra, era meu hemisfério esquerdo que coordenava essa tarefa, que se tornou quase impossível. Mas, ao digitar, usam-se as duas mãos e recorre-se aos dois lados do cérebro. Digitar, portanto, era mais fácil. Minha habilidade matemática também se perdeu.
Como isso aconteceu?
Perdi os neurônios responsáveis por compreender os números. Deixei de entender qualquer coisa relacionada a dinheiro. Para mim, 25 não era nem maior nem diferente de 10. Sentia-me incapaz de julgar se os preços eram justos. Levou anos até que meu cérebro conseguisse entender o que era o algarismo 1. E, se você não consegue entender o que é 1, também não conseguirá entender o que significa 1 + 1. Só quatro anos após o derrame minha mente se recuperou o suficiente para entender o conceito de 1 e fiquei pronta para reaprender adição, subtração, multiplicação e divisão. Depois de entender o que era um número, treinei minha habilidade matemática com a ajuda de videogames e programas que estimulam essa área. Também demorei um ano para aprender a arrumar a louça no escorredor. Parece simples, mas as tarefas de organização demandam a capacidade de calcular.
Sua visão foi comprometida?
Eu não processava a visão de forma convencional. Perdi a habilidade para definir os limites entre os objetos. Todos eles se fundiam, formando uma imagem maior, como num quadro impressionista. Se uma pessoa ficasse parada junto à porta, eu não conseguia percebê-la, a menos que ela se movesse.
Por que nem todas as vítimas de derrame relatam as mesmas experiências ou distorções sensoriais pelas quais a senhora passou?
A diferença está no grau de conhecimento sobre biologia e neurologia que eu tenho em relação à maior parte dos pacientes. Talvez eles passem pela mesma experiência, mas a descrevem de forma diferente ou têm uma compreensão mais limitada do que lhes está acontecendo.
“É falso que o cérebro só se recupera nos seis meses posteriores ao acidente vascular. A estimulação pode fazer com que muitos neurônios, adormecidos para se proteger do trauma, voltem a funcionar depois desse prazo”
Como a senhora conseguiu se recuperar sem nenhuma seqüela?
Graças à minha experiência como neurocientista, soube como estimular meu cérebro da maneira correta para que parte dos neurônios recuperasse suas antigas conexões. Além disso, eu tinha um mapa muito claro das áreas que precisavam ser tratadas prioritariamente.
Como os médicos devem lidar com os pacientes vítimas de derrame?
Os médicos não são treinados para lidar adequadamente com esses pacientes, sobretudo quando o hemisfério esquerdo é afetado e o doente não pode falar nem comunicar o que está pensando. Durante minha recuperação, um médico que tentava avaliar meu raciocínio me perguntou quem era o presidente dos Estados Unidos. Primeiro, tive de vasculhar todos os meus arquivos mentais que me explicassem o que era um presidente. Depois, todos os arquivos relativos aos Estados Unidos. Mas o que ele queria saber não dizia respeito ao conceito de presidente ou de Estados Unidos, mas a um personagem específico, Bill Clinton, que estava armazenado numa pasta completamente diferente. O médico teria sido mais eficiente se tivesse me perguntado quem era Bill Clinton, uma resposta que eu certamente encontraria ao revirar meu arquivo mental sobre esse personagem. Os médicos precisam entender como o cérebro de um sobrevivente de derrame funciona, em vez de tentar avaliá-lo segundo seus próprios critérios.
O que sua experiência ensina aos médicos?
Que a afirmação de que seis meses é o prazo máximo para uma vítima de derrame recuperar determinada habilidade está totalmente errada. Os seis primeiros meses são os melhores, mas vi meu cérebro se recuperar durante oito anos. Já ouvi pacientes dizer, quinze anos depois do derrame, que estavam readquirindo movimentos. Além do mais, já se sabe que, após o derrame, algumas células cerebrais que sofreram o trauma interrompem suas conexões com outras células e ficam num estado de dormência, mas não estão mortas. As células que morrem são aquelas que entram em contato direto com o sangue do derrame. Os grupos de células que ficam adormecidas isolam-se para se proteger. Com o tempo, conforme aumentamos a estimulação, eles podem crescer, conectar-se à rede e voltar a funcionar. Isso sem falar na capacidade de adaptação das células cerebrais. Quando as células responsáveis por uma tarefa não podem mais realizá-la, passam a contar com a colaboração de outros grupos de células, desenvolvendo novas habilidades e compensando aquela que foi perdida. Quando se perde um dos sentidos, os outros tendem a ficar mais aguçados.
Que avanços a medicina fez recentemente no estudo dos acidentes vasculares cerebrais?
Nos últimos dez anos, houve duas grandes contribuições científicas à crença na capacidade de recuperação constante do cérebro. A primeira vem do conceito de neuroplasticidade, em que o cérebro altera suas conexões conforme o tipo de estímulo. Antes, pensava-se que a estrutura do cérebro era definida na primeira infância, e não mudava. A segunda vem da descoberta de que novos neurônios crescem em locais estratégicos. Um exemplo: um alcoólatra de longa data pára de beber. Depois de três meses, novos neurônios começam a crescer no hipocampo, a parte do cérebro responsável por armazenar memórias recentes. Assim, ele terá um grande estímulo à aprendizagem. Até dez anos atrás, tínhamos como certo que não se formavam novos neurônios.
Que conselhos a senhora daria a um familiar ou amigo de vítima de derrame?
Primeiro, entenda que o sobrevivente de derrame não se tornou um incapaz. Ele apenas está doente. Segundo, esteja certo de que o paciente está tentando fazer as tarefas propostas, apenas não no nível de habilidade nem no tempo de quem as propõe. Portanto, não avalie sua capacidade cognitiva pela velocidade com que ele responde. Fale com ele diretamente em vez de falar sobre ele com os outros, como se ele não estivesse ali. Incentive-o a aprender constantemente, mesmo que leve vinte anos. Ao propor um desafio ou tarefa, fragmente todas as ações em pequenos passos e esclareça ao paciente qual é o próximo, para que ele possa saber que objetivo está perseguindo. Formule questões de múltipla escolha em vez de perguntas cujas respostas sejam sim ou não. Elas estimulam o cérebro a trabalhar. E dê-lhe tempo para procurar a resposta em vez de completar suas frases. Comemore todos os pequenos avanços na recuperação, porque eles são a inspiração para conquistas maiores. Sobretudo, ame-o pelo que ele é hoje.
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