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Iludidas pelo perdão?

A matéria “Iludidas pelo Perdão”, publicada no Caderno Cidades do Correio Braziliense, em 11/02/2007, coloca algumas questões graves. Um mês depois de havermos, sem sucesso, tentado apresentar um contraponto em artigo que esperávamos ser publicado no mesmo jornal, aceitamos outros espaços.

Por que as mulheres agredidas vão à delegacia para registrar queixa de agressão sofrida pelo marido/companheiro e, dias depois, regressam para retirá-la, assinando o termo de renúncia? Por que as mulheres perdoam seus algozes? Promotores/as e juízes/as estimam que, em mais da metade dos processos abertos, as mulheres capitularam…  Uma autoridade da área da Justiça chegou a declarar haver dois tipos de mulheres — “as que gostam de apanhar” e as que “têm dignidade e acabam morrendo”. Essas questões nos remetem a vários questionamentos. Chamamos atenção para alguns, entre eles.

Transparece, nos depoimentos apresentados, uma interpretação de que… a culpa é da mulher. Há uma responsabilização das mulheres que são agredidas. Elas não só retiram a queixa, como acabam por perdoar seus agressores. Capitulam, têm medo deles, sentem-se constrangidas em denunciá-los. Sofrem em silêncio e caladas, temem não conseguir dinheiro para viverem sós e/ou com seus filhos. Enfim, elas, além de pobres coitadas, são… as culpadas!

Por que razões as mulheres retirariam as queixas? Por que razões perdoam seus agressores? Por que razões “gostam de apanhar”? Será que alguém já as indagou sobre isso? Vivemos em uma cultura que até ousou expressar sua misoginia, por meio de um porta-voz bem conhecido no país, que declarava: “Nem todas as mulheres gostam de apanhar. Só as normais”. Não foram poucos os senhores bem postos na vida que se divertiram em rodas de bares, relembrando essa “mensagem”, a um só tempo, produzida por nossa cultura da dominação masculina e alimentadora desse caldo cultural.

São muitas as pressões, ameaças e medos que sofre uma mulher para não denunciar. Quando o faz, que garantia lhe é oferecida de que permanecerá viva? Que tipo de empoderamento, de fortalecimento lhe é oferecido para que mantenha a denúncia que lhe custou tanto fazer? Há sempre julgamentos morais e políticos relativos à violência vivida, como sendo falhas da mulher em seu “papel” … de subordinada.

Que alternativas de segurança lhe são oferecidas, quando, muitas vezes, sua queixa nem mesmo é registrada? A mulher é apenas “aconselhada” a voltar para casa e “se entender” com o marido/companheiro agressor. E muitos registros acabam nem mesmo sendo considerados, pela precariedade das condições de trabalho, que não possibilitam a investigação por falta de tudo: pessoal, viaturas, tempo, equipamentos.

Por que o Judiciário se empenha em promover a “conciliação” entre o casal? Tal empenho não se vincularia a uma percepção familista de que, a qualquer preço, a família tem de ser mantida, e não a percepção do imperativo ético e político da defesa da integridade física e psíquica da mulher, para garantir-lhe o direito humano fundamental à vida e à dignidade? Qual o significado da conciliação para além da des-responsanbilização do poder público, devolvendo a responsabilização da situação de violência à esfera do privado, de devolvê-la ao casal para que busque soluções?

Outra “solução” proposta é de colocar as mulheres durante seis meses em um processo “terapêutico”, o que pode significar colocá-las em um processo de convencimento de que sua melhor alternativa é … perdoar.

As mulheres são agredidas, muitas correm risco de morte, são obrigadas a abandonar sua casa, filhos, emprego, parentes, pertences, até mesmo a fugir ou desaparecer. Passada a fase do pagamento de cesta básica, os agressores permanecem soltos. E, quando presos, não há indicação de que serão mantidos, por tempo razoável, na prisão.

Ser homem ou ser mulher é, muito mais do que uma determinação biológica, uma questão ligada a modelos culturais impostos e idealizados, por um dado grupo social. Falamos sobre um mundo onde o valor e o poder das pessoas são desiguais, não apenas da perspectiva de gênero, mas de outras perspectivas a ela associadas: raça/etnia, classe, geracional, regionalidade etc. A essa realidade, que se desdobra no âmbito das instituições, o Judiciário não está ileso.

Aceitar a conciliação seria a opção proposta para as mulheres. A pergunta permanece: “conciliar,” na área de família, é possível? Quem vem pagando com a vida pela “conciliação” e pelo perdão? No quadro de nossa realidade, em que mulheres continuam a ser cotidianamente executadas, apostar na conciliação no âmbito da família pode contribuir para construirmos alguma alternativa defensável para as mulheres, para além da disjuntiva colocada pela Promotora do Tribunal do Júri do Distrito Federal: supostamente “gostar de apanhar” ou preservar a dignidade e acabar morrendo?

Lourdes Bandeira e Ana Liési Thurler são profas. do Depto. de Sociologia da Universidade de Brasília e integrantes do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher-NEPeM/UnB.

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